terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Escola sujeita às regras do mercado

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por António Avelãs

A Escola sujeita às regras do mercado

Como um pouco por toda a Europa, também em Portugal se tem vindo a desenvolver uma persistente campanha assente na mistificação de querer construir um sistema educativo muito mais barato – à custa de cortes significativos nos orçamentos para a Educação (1) - sem que isso prejudique a qualidade dessa mesma escola. Com os governos de José Sócrates (2005-2011) esta campanha “aprimorou-se” assente num desajustado arrazoado de mentiras, meias verdades e de meros actos de propaganda. Ponto de partida: Portugal estaria a investir mais do que os outros países na Educação, mas os resultados são dos mais fracos; persiste um elevado abandono, há um excesso de repetências, os resultados do PISA não nos deixam bem colocados. Ignorando deliberadamente o facto de o país estar num processo de “queimar etapas”, tentando fazer em três décadas o que outros fizeram muito mais lentamente – e portanto de uma forma bem mais sustentada – Maria de Lurdes Rodrigues (e a sua equipa) fez dos professores o seu principal alvo: havia que “meter na ordem” uma classe mimada de privilegiados, excessivamente bem pagos (tese que já vinha de anos anteriores…), que davam inúmeras faltas, que se desinteressavam das aprendizagens dos seus alunos, que se recusavam a ser avaliados. Boa parte dos seus discursos são meros actos de propaganda que não resistem a qualquer abordagem mais séria: clama-se contra os elevados salários dos professores (2), atiram-se para a opinião pública números de horas de aulas não dadas escamoteando que esse número, aparentemente brutal, dizia respeito a quase 150000 professores e educadores de infância, população esmagadoramente feminina com o que isso implica, na estrutura actual das nossas sociedades, de apoio a crianças, à família, para não falar obviamente da questão da maternidade. Fez-se criar na opinião pública que os professores não trabalhavam, tinham horários de luxo, enfim, criou-se o ambiente propício para o vilipêndio da profissão docente. Congelaram-se os salários e as progressões na carreira (como aliás em boa parte da função pública, ela própria igualmente tratada como um grupo de privilegiados), (3) aumentou-se drasticamente o número de horas a”permanecer” na escola, medida que se mostrou inútil no que respeita às melhorias das aprendizagens, etc…

O acesso à estabilidade de uma carreira docente foi quase suprimido. Alegando a necessidade de “estabilizar” o corpo docente das escolas, MLR suprimiu os concursos anuais substituindo-os por concursos de 4 em 4 anos, o que obriga os docentes a prolongarem a sua situação de “contratados”, isto é, muitíssimo mal pagos e em situação precária. Claro que não garantiu qualquer estabilidade: proliferaram em todas as escolas os docentes contratados (em algumas, são já mais de 50% dos docentes) muitos dos quais continuam a mudar de escola todos os anos. Em vez da estabilidade, cresceu a instabilidade, mas a docência passou a ser exercida por profissionais muito mais baratos – que era o objectivo a atingir.

A ideologia, traduzida na própria linguagem entretanto “banalizada”, era clara: a escola deveria ser tratada e dirigida como qualquer empresa: o conselho executivo, órgão colegial eleito pelo conjunto de professores e trabalhadores da escola, deu lugar ao director – escolhido por um órgão restrito mediante um concurso público - que, tal como um bom gestor escolhe a sua equipa “mais próxima”, passa a escolher os coordenadores dos departamentos – com os quais compõe o conselho pedagógico a que ele próprio preside. Vai espalhando-se a ideia de que o director deve poder escolher os “seus professores”, pondo fim ao concurso público de colocação dos docentes, rapidamente crismado de obsoleto, burocrático e prejudicial ao bom desempenho da escola. Ainda se deram alguns passos nesse sentido (caso dos chamados TEIPS) (4), mas não houve (ainda) condições para desenvolver essa medida. Como qualquer empresa, cada escola deve definir os seus objectivos, exigir que os professores definam os seus próprios objectivos, sempre com a intenção de fazer cumprir os que a escola definiu, deve premiar os que o “chefe” considerar melhores (na maior parte das vezes, apenas porque são os mais obedientes), deve criar junto dos seus “clientes” (os pais dos alunos) uma “boa imagem”, uma imagem de eficácia e de sucesso, traduzida num bom lugar nos rankings anuais das notas de exames. Todo o kafkiano modelo de avaliação de desempenho docente de Lurdes Rodrigues foi idealizado sob o modelo da escola-empresa. Os professores conseguiram evitar que esse modelo de avaliação fosse concretizado; mas o modelo da “eficiência empresarial” instalou-se de facto no ambiente escolar com evidentes prejuízos para a missão pedagógica, se considerarmos que o trabalho do professor deve ter como centro a “formação integral” de cada um dos seus alunos.

Reduzindo o número de professores, pagando-lhes menos, sujeitando-os a situações de grande precariedade, agravando até ao absurdo as condições de trabalho (e de aposentação) e submetendo-os ao poder acrescido (e arbitrário) do director, a política de José Sócrates tornou o ensino mais barato mas diminuiu drasticamente a qualidade da escola e a desvalorizou o papel dos professores e educadores.

A política do embaratecimento radical da educação, traduzida na deterioração progressiva das condições de trabalho e no “desconforto” com o rumo dado à escola, fez com que milhares dos melhores docentes antecipassem a sua aposentação, mesmo com fortíssimas penalizações salariais; a degradação salarial cresce de ano para ano, ultrapassando já, em média, os 15% relativamente ao início da década; expande-se o número de docentes em situação de precariedade e com salários muito baixos; profissão cada vez mais exigente, ser professor ameaça deixar de ser uma primeira escolha, sendo de prever para breve a carência de docentes em várias áreas – o que só não acontece já pela grave retracção do nosso tecido económico.

A política de poupança no sistema educativo traduz-se também na degradação do apoio aos alunos com maiores dificuldades de aprendizagem, de que as escolas tentam livrar-se em nome da defesa da sua “boa imagem social”. Há sérias razões para temer as condições em que se virá a concretizar o já aprovado prolongamento da escolaridade obrigatória para 12 anos e parece estar comprometida a expansão da rede pública para a frequência do pré-escolar (3-5anos) e a rede de infantários e creches. (5)

Há quem sustente que esta degradação progressiva da escola pública pretenda facilitar uma maior entrada do privado no sistema de ensino. Pode ser que a médio prazo isso venha a suceder. No imediato, a crise económica trouxe para o sector público um bom número de jovens que estavam no privado, o que se traduziu não num aumento de professores mas no aumento do número de alunos por turma. E acentua-se a divisão entre escolas (públicas) para a “elite”,i.e., para os ricos (as melhores dos “rankings ou que conseguem vender uma “boa imagem social”) e escolas (públicas) para o comum dos mortais – as que por opção democrática de justiça social ou por não terem outra possibilidade – não fazem selecção social. Se as primeiras são as escolas de sucesso, de que os directores se ufanam, as segundas são as escolas que falharam, que só não se encerram porque socialmente dá jeito manter os jovens nas escolas, até para um mais eficaz controlo. Afinal, o sistema educativo parece condenado, no capitalismo doentio que nos governa, a funcionar com as mesmas regras do sacrossanto mercado.

Notas:
(1) O Orçamento de Estado para 2011 impôs ao Ministério da Educação (que nessa altura não incluía o ensino superior e a investigação científica) um corte de 803 milhões de Euros, isto é, 11,2% relativamente a 2010. Anunciam-se novos cortes para o Orçamento de Estado de 2012.
(2) Insiste-se muito no facto de o salário do topo da carreira (do ensino não superior), que era de 3091,82 euros (valor ilíquido) antes do corte imposto por Teixeira dos Santos, em Janeiro de 201, ser superior à media do topo dos vencimentos dos professores na UE, escamoteando que o vencimento de entrada na carreira -1518,63 euros – está entre os mais baixos, e que ao longo da carreira os docentes portugueses ganham de facto abaixo da média europeia. Para não falar do vencimento dos contratados – 1373,13 euros no caso de serem licenciados profissionalizados ou de 112,89 no caso de o não serem.
(3) A progressão na carreira foi anulada entre 31 de Agosto de 2005 e 31 de Dezembro de 2007 e de1 de Janeiro de 2011 até, previsivelmente, 31 de Dezembro de 2013. Os salários sofreram um corte nominal entre 7 e 9% no ano de 2011, situação que ameaça prolongar-se.
(4) Territórios Educativos de Intervenção Prioritária. Alegando a dificuldade do exercício da profissão nestas escolas, Lurdes Rodrigues decidiu que estas escolas poderiam escolher, através de um concurso organizado pela própria escola, os seus professores, não entrando estas escolas no concurso normal de colocação. O resultado foi muito negativo: com a diminuição do número de professores do quadro da escola e a preferência, normal, dos candidatos por escolas menos problemáticas, estes TEIPS vêem-se confrontados com falta de elevado número de professores no início do ano, sendo neles colocados os docentes que não conseguiram outra colocação, não necessariamente os mais preparados para trabalhar nestas escolas mais difíceis.
(5) É paradigmático que um ministro do actual governo de centro-direita, responsável pela área do solidariedade social, tenha decidido aumentar o número de crianças por sala nas creches mas, em vez de recorrer a profissionais bem preparados para fazer face ao aumento do número de crianças, tenha afirmado (ver jornal “Público” de 30 de Agosto de 2011) pretender recorrer a voluntários.
(6) É paradigmático que um ministro do actual governo de centro-direita, responsável pela área do solidariedade social, tenha decidido aumentar o número de crianças por sala nas creches mas, em vez de recorrer a profissionais bem preparados para fazer face ao aumento do número de crianças, tenha afirmado (ver jornal “Público” de 30 de Agosto de 2011) pretender recorrer a voluntários.

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